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Eu cresceria convencido de que aquela lenta procissão de pós-guerra, um mundo de quietude, de miséria e de rancores escondidos, era tão natural quanto a água da torneira, e que aquela tristeza muda que sangrava das paredes da cidade ferida era o verdadeiro rosto de sua alma. Uma das armadilhas da infância é que não é preciso se entender uma coisa para sentir. Quando a razão é capaz de entender o ocorrido, as feridas no coração já são profundas demais. No meu mundo, a morte era uma mão anônima e incompreensível, um vendedor a domicílio que levava mães, mendigos ou vizinhos nonagenários como se fosse uma loteria do inferno. A idéia de que a morte pudesse caminhar ao meu lado, com rosto humano e coração envenenado de ódio, vestida de uniforme ou capa de chuva, que fizesse fila no cinema, que risse nos bares ou levasse as crianças para passear no parque Ciudadela de manhã, e que de tarde fizesse desaparecer alguém nas masmorras do castelo de Montjuic ou numa fossa sem nome nem cerimonial, não entrava na minha cabeça. Ruminando o assunto, pensei que talvez aquele universo artificial que eu considerava bom não fosse senão uma cena armada. Naqueles anos roubados, o fim da infância, como a Renfe, chegava quando chegava. (pt) |